sexta-feira, 8 de julho de 2011

Baú de memórias


Vivi três vidas e,quem sabe, estou prestes a começar a quarta.
                 Da primeira me lembro muito pouco: pisos azul-turquesa,ajulejos rosa-choque,cômodos vazios, portão baixinho e quebrado.E um silêncio sem fim.
                 De repente,pedreiros quebrando e reconstruindo,aumentando meus quartos. Eletricistas.Pintores.Muros altos.Móveis escuros.Livros,livros,livros.E um bebezinho de quinze dias que chorava muito!Várias empregadas: umas vinham,olhavam e não voltavam.Outras ficavam e cuidavam dos dois meninos,que cresciam risonhos e espertos.Eu me sentia feliz com tanta algazarra.E quando chegou Dóber, o primeiro cãozinho,foi uma festa!O casal brigava e se reconciliava.Amigos e amigas enchiam minhas salas com suas risadas.Os meninos,depois de adolescentes,todos os sábados à tarde tocavam rock na garagem.Os vizinhos ranzinzas telefonavam xingando e os simpáticos aplaudiam das varandas dos seus apartamentos.Parentes visitavam-nos: avó materna,falante,gostava de cozinhar. Avô materno,quieto e observador.Avô paterno,trabalhador: o que tem aí que precisa de conserto?Avó paterna,risonha: quem quer aprender a bordar? Tios,tias,sobrinhos,sobrinhas,era um fervilhar.Durante quinze anos Luísa comandou tudo: casa,cozinha, os patrões.Só não conseguiu com os adolescentes,é claro.Me deixava brilhando e cheirosa e brigava com quem tirava alguma coisa do lugar e não guardava depois.Luís Gustavo fez vestibular e aos 17 anos foi estudar em São João del'Rei e depois se transferiu pra Uberlândia. Carlos Henrique,três anos depois,foi estudar em Uberlândia também.Eu me deprimi,sentia falta das brigas, das conversas,das músicas.A mãe chorava no banheiro,escondida.O pai trabalhava,trabalhava.Síndrome do ninho vazio,dizem.
                 Há mais de vinte anos sem reformas,eis que minmha terceira vida me pegou de surpresa:pedreiros,pintores,eletricistas de novo. Derruba aqui,levanta dali. Em menos de um ano fiquei novinha em folha.E então aconteceu: meus donos se divorciaram.( tudo tem início,meio e fim,não é?).Lucimar ficou morando no apartamento debaixo( sim, eu sou duas,esqueci de contar esse detalhe) e Maria Neusa na casa, que encheu de móveis novos,amigas livros e risadas.Duas alegrias: o nascimento do neto Yuri e Carlos henrique e Iara,juntos e aprendendo a felicidade.
                 Inesperadamente um fio se rompeu( seria o da sanidade? ) e toda a estrutura desmoronou.Maria Neusa foi passar Natal em Divinópolis e não voltou mais.Eu fiquei fechada um ano,remoendo: onde foi que eu errei?
                 O caminhão com a mudança acabou de sair e me sinto nua e desprotegida.
                  E cheia de dúvidas: terei uma quarta vida? Terei novos donos? Como serão? Estou ansiosa:vivo,respiro,espero - sentimentos tão humanos e que se entranharam em minhas paredes.


                                                        Maria Neusa em 11/02/2009

2 comentários:

  1. Que bonito Neusa. Acho que as casa são assim como você descreveu.Não sei se você conhece um livro que se chama "Poética do Espaço" do Gaston Bachelar é lindo. Ele diz que nossas recordações sempre estão atreladas as nossas casas, que sempre que contamos pedaços da nossa vida infantil, as casas sempre estão presentes nestas recordações. Em suma a casa é a soma de suas recordações e em nossa vida não há recordação que não tenha uma casa. Muito lindo este Neusa, precioso.

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  2. Foi uma viagem pela sua vida...hora momentos tristes...hora momentos felizes...já vi que os livros estavam sempre muito presentes...a alegria na união do Carlos com a Yara...a suprema realização quando nasce o netinho...é...realmente, se as casas falassem...quantas histórias elas teriam para contar?...muitas vezes, coisas, acontecimentos, fatos dos quais nem nos lembramos mais...mas nelas ficaram gravados e lá, ainda vivem...

    Foi muito bom te conhecer um pouco mais...

    Voce ainda não se encontrou com os filhos, né?...aguenta coração!!!!

    Um lindo fim de semana, cheio de luz, paz e serenidade...
    beijos com carinho

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