sábado, 26 de fevereiro de 2011

Eu recomendo e com aplausos - 1 -


Um,Dois,Três


         Eu queria um dia fazer uma crônica como uma valsa antiga.Que rodopiasse pela página como,digamos,um velho comendador de fraque e sua jovem amiga.Cheia de rimas como quimera e primavera.Com passos e compassos,ah quem me dera.Talco nos decotes,virgens suspirosas e uma sugestão de intriga.
         Os parágrafos seriam verso e figurações.No meio,um lustre,na tuba um gordo e em cada peito mil palpitações.Os namorados trocariam olhares.As tias e os envergonhados nos seus lugares.E de repente uma frase perderia o fio,soltando sílabas por todos os salões.
          A segunda parte me daria um  nó.
          Os pares param,o maestro espera e ninguém tem dó.
          Dou ré,vou lá,já não caibo em mi.
          E então decreto - vá fá - é cada um por si!
          Um,dois,três.
          Um,dois,três.
          A minha orquestra seria toda de professores.Um de desenho,três de latim,cinco de português e todos amadores. O baterista cheiraria coca. O contrabaixista não parece o Loca? E o gordo da tuba um duque da Bavária nos seus últimos estertores.
          Um cadete rouba o amor da filha de um magnata.Pescoço de alabastro,boca de rubi e olhos de uma gata.O namorado,despeitado,urde sua vingança.É quase meia-noite e segue a contradança.O pai da moça dorme nos seus sete queixos e sonha com uma negociata.
          No avarandado branco,onde vão ver a Lua
          A moça e o cadete,que a imagina nua,
          Beijam-se perdidamente a três por quatro.
          E o segundo traído sou eu,que não encontro rima para "quatro."
          Um,dois,três.
          Um,dois,três.
          Um violinista,de improviso,olha o relógio e perde um bemol.Faltam poucas linhas para acabar meu espaço e surgir o sol.Lá fora o par apaixonado.De tanto amor nem olha para o lado.Não vê o despeitado que se aproxima,quieto e encurvado como um caracol.
           Eu mesmo me concedi esta valsa e, portanto,tenho a decisão.Que arma usará o traído na sua vil ação? Uma adaga,fina e reluzente? Combina mais com o requintado ambiente.Mas se errar o passo e o alvo o vilão e, abrindo um filão,conspurcar o alvo chão?
           Um tiro na nuca é mais ligeiro.
           Mais prático,moderno e certeiro.
           Mas, meu Deus,o que é que eu estou fazendo?
           Comecei com uma singela valsa e já tem gente morrendo!
           Um,dois,três.
           Um,dois,três.
           Eu só queria fazer uma crônica como uma valsa antiga. Que rodopiasse pela página como um comendador cansado e sua compreensiva amiga.Cheia de rimas sem compromisso aparente.Nem com couro,nem com prata,nem com a crise do Ocidente.Decotes bocejando.Virgens sonolentas e nem uma sugestão de briga.
           Um,dois, três.
           Etc.

Luís Fernando Veríssimo in Comédias para se ler na Escola

 
_ Meus pensamentos precisam aprender a valsar...assim viverei com mais leveza.


 

3 comentários:

  1. Adorei, o texto e a imagem. Até os ursos conseguem ser leve, por que a gente não?

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  2. eis um texto de primeira linha e acompanha uma sugestão -por que não postar também por aqui aquele vídeo do bailarino da morte do Cisne?

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